O Rei do Rio de Janeiro(um sujeito de costumes)
Nereu nunca fora de mijar na rua, e continuou não sendo durante aquela tarde tão peculiarmente diurética.
Voltava de seu emprego, e ia para casa num daqueles momentos em que você se lembra que tem bexiga e se torna realmente difícil de esquecer novamente.
Nereu era segurança do Bondinho do Pão-de-açucar, gostava de brincar dizendo que quem fazia a verdadeira segurança lá era o cabo de aço.
Chegando a casa, foi direto para o banheiro como se tivesse sido catapultado violentamente.
Levantou a tampa do banheiro, mas nem notou de tão rápido que o fez, seu zíper cantou e Nereu se fez valer.
Teria que voltar para o trabalho daqui a algumas horas, e apesar de adorar bossa nova, não quis ouvir Tom Jobim e desligou o rádio no meio do “fim do caminho” das águas de março.
Nereu era pura pluma, tinha lá os seus problemas, mas era pura pluma depois de uma boa mijada.
Ainda com o uniforme, comeu alguma coisa que não tinha muito gosto, e na T.V ,assistiu algum filme que não tinha muitas mortes.
De volta ao trabalho.
O Nunes estava no lugar dele enquanto fora jantar em casa.
Nereu balança a cabeça pra frente ao encontrar o Nunes dizendo: “Nuuuunes !”
Nunes murmura de volta algum cumprimento que nem ele entendeu muito provavelmente.
Porta do bondinho se abre , gringos e mais gringos; japoneses com cara de chineses, e paulistas com cara de japoneses que tinham cara de chineses... isso sem mencionar os coreanos, muitos coreanos.
Todos estagnados com a beleza da cidade.
Nereu era o único dos seguranças que ainda se deslumbrava com a visão apesar de não demonstrar através de seu duro rosto negro que inspirava excesso de disciplina extrema (pelos menos aos que não conheciam o Nerê da sinuca, ou o Nenê Batata das verdes mesas de pôker , que entrava em serviço normalmente nos dias de folga)
Morro da Urca , apesar de belo ,era apenas um prelúdio do Belo, o encanto dos encantos para Nereu : o Pão-de-açucar .
Ao chegar aos elevados níveis da magistral montanha, sua mente sempre liberava uma espécie de tranqüilizante para todo o resto da alma, e lá estava ele...no alto.
____” O pato, vinha cantando alegremente Quén Quén, quando o marreco sorridente pediu para entrar também no samba,no samba, no samba , o ganso (pampamram) olhou pra dupla e disse assim Quén Qén Quén ,olhou pro cisne e disse assim vem vem, que o quarteto ficará bem, muito bom muito bem”____
Estava perto das nuvens de todas as formas que conhecia, fora o zumbido no seu ouvido e os insistentes cliques de máquinas fotográficas, ouvia João Gilberto, não o via , mas o ouvia o que talvez até fosse melhor ,já que uma vez quando o músico foi ao Morro da Urca, nem se quer cantarolou uma melodia para o desespero de Nereu.
Não era só uma pedra gigantesca, era um pedaço amputado de Deus que caiu e se petrificou para se adequar a realidade dura dos Seres da Terra , assim pensava Nereu de seu lugar preferido no mundo.
O bondinho descia e a fagulha intensa da despedida mordia o seu corpo.
O percurso só o desagradava quando lembrava que iria demorar alguns minutos para chegar ao Pão-de-açucar novamente.
E nos céus pretos cariocas atabalhoados de estrelas fulgurantes e expressivas feito rugas, Nereu fazia a segurança, e para todos os passageiros nada mais do que isso, talvez para o resto do mundo...até menos que isso.
Sim, talvez fazer a segurança do bondinho fosse seu único motivo pra viver, se a vida fosse um filme, na cena em que finalmente os heróis chegassem ao Brasil, depois de finalmente chegar ao Rio de Janeiro, depois de finalmente passar sambando no meio de mulatas requebrantes, quem sabe não houvesse uma fuga com um remix de um samba alucinado, passando pelo bondinho e lá no canto, bem no canto estaria Nereu tolerante com olhos caídos...o segurança do bondinho, e nada mais...
Nereu não era mesmo muita coisa, você já deve ter passado por ele, eu já passei por ele também, mas e daí... quem se lembra?
Já havia certo tempo que Nereu andava preocupado com o pouco de vida que levava, e buscava uma mudança, chegando até a ir numa Igreja Evangélica, mas saiu muito mais rápido que o tempo que levou para decidir se ia.
Tudo de Nereu era tão de sempre ,(era um sujeito de costumes) nunca trocara o estofamento do sofá ,seus móveis não poderiam ser mudados de lugar , pois os lugares já faziam parte dos móveis e vice-versa, suas conversas eram sempre sobre o mesmo assunto, tudo sempre a mesma coisa.
Desde que nascera era aquela mesma casa.
Seus brinquedos aposentados , ainda enfiados na mesma caixa desde uma noite chuvosa de outubro de 1975.
E assim era Nereu, menos
oblíquo possível , o mais óbvio, que escrevia certo nas linhas certas, seguindo o destino que alguém inventou.
Nereu estava mergulhado na vida , não comandava sua própria história...era um personagem nas mãos de um qualquer, e nunca se deu conta disso.
Até que o sino bateu e fizeram a última viagem da noite, podia retornar a casa e enquanto tirava o uniforme, todos esses pensamentos nesta mesma ordem baleavam a cabeça de Nereu, mais precisamente no momento em que ele se viu com vontade de mijar ...novamente, como que seguindo uma regra estúpida e sem necessidade.
Nereu correu até seu carro, tropeçou e caiu de boca no chão, lembrou-se que fazia tempo que não caia, se levantou, entrou no carro e deu a partida.
O certo o cercava.
... teria que ir para casa.(pois era o certo)
...teria que trocar sua roupa.(pois era o certo)
...teria que tomar um copo de água.(pois era o certo)
... teria que dormir(pois era o máximo da interferência do certo em sua vida)
Berrou!
Mesmo que não usando a garganta(o que não era lá muito certo) , Nereu berrou dentro de seu Fiat uno azul.
Por que viver tinha de ser tão a mesma coisa?
Por que viver era o acúmulo de quereres muito mais do que de poderes?
Nereu queria não querer ,Nereu queria apenas entender...enfim Nereu queria mijar.
Parou o carro na beira da pista , arreou suas calças e mijou ...como nunca dantes.
A lua brilhou ,apaixonada por Nereu , já São Jorge virava para o lado oposto , nunca gostou de ver nego mijando na rua.
Tudo apagado e Nereu chutando a madrugada em seu carro, ele correu e correu até que teve a mais sublime das idéias.
Deu meia volta com seu carro, e voltou para o trabalho.
Sem que ninguém soubesse, sorrateiro abriu umas portas e subiu umas escadas muito ofegante e esperançoso, degrau por degrau a expectativa crescia apesar de fazer aquilo todos os dias, aquele era mesmo especial.
Ligou o bondinho, sim ele ligou o bondinho, solitário no alto do Rio ,o vento era gélido e típico das madrugadas,Nereu gostou,estava mais perto da Lua e com o peito cheio de algum sentimento semelhante ao sentimento de bexiga cheia que sentia a pouco...lá estava ele ,trocando bexiga por coração e sendo estonteantemente feliz, decidiu que gostava mais da bexiga do que do coração (não que ele não pensasse assim antes, só nunca havia refletido sobre o assunto)
Foi sendo elevado,agora sem uniformes ou turistas , já havia se decidido ,estava subindo no bondinho por um motivo que sempre sonhara...
Sentia o ouvido entupido, mas até isso parecia combustível para aquele enorme sorriso que quase rasga a face do rapaz , quando nota que se passaram dois minutos desde o Morro da urca e... estava chegando!
Nereu por alguns segundos, pode se lembrar o que era ser criança novamente.
O sentimento de se elevar nunca havia sido tão bem sugerido, eu diria até no mundo inteiro.
Chegada!
(Pausa. Enorme pausa no mundo inteiro, não acredito que qualquer ser no universo tenha sido capaz de fazer qualquer coisa naquele momento, imãs puxavam as pálpebras de Nereu para cima, e estas se abriam, e este era o único movimento que se ousou fazer no mundo inteiro naqueles segundos.Pausa)
Alguns músculos da face de Nereu começam lentamente a quebrar a solenidade e destroem tudo ao forçarem o sujeito a jogar a cabeça pra frente, se arrepiando com olhos ardendo como arenosos, e convertendo a face de Nereu, em uma feição que ele só fazia quando chupava limão ou...chorava!
A porta se abriu e seu coração se encolheu. (gemeu)
Não sabia o que fazer...
Saltou do bondinho, correu no Pão-de-açucar e lá adormeceu.
No dia seguinte se deslumbrava mais a cada segundo, com todas as flores ,nuvens e sons encantadores de pássaros.
Logo arrumou um lugar escondido pra morar e passou a habitar o local...e alguns poucos dias lá se proclamou Rei, Rei do Rio de Janeiro, estava bem, estava feliz... Governando suas vontades, comendo frutas e sendo tão livre quanto os pássaros de lá.
Uma manhã, ele percebeu que o mesmo pássaro sempre cantava no mesmo lugar, as flores sempre ficavam no mesmo lugar, assim como as estrelas, e de repente se viu num regime de sempre acordar e admirar todo o mundo lá de cima como Rei que era.
Seu peito doeu ,pois notou ,que voltava a ser personagem no destino... Um dia voltou para a civilização e viveu a sua vida como Nereu, um sujeito de costumes normalmente.
Três semanas depois se viu na mesma posição de sempre, e depois de muito pensar ,ele acabou descobrindo que o seu destino era mesmo de sempre ir contra o destino, não importa o que Nereu fizesse para combater o destino... já havia sido pré-destinado.
Sina!
FIM