sábado, abril 08, 2006


PALAVRA: PIRU

MARCELO ADNET - COLUNA LIVRE ARBÍTRIO
(Por motivos de força maior Adnet ainda nã ganhou u header, mas semana que vem...





QUINTA À NOITE EM CAMPOS DOS GOYTACAZES

Noite de quinta em Campos dos Goytacazes. Que tédio é uma quinta quente e escura em Campos dos Goytacazes! Não só as noites de quinta, mas também os domingos nublados, as terças de chuva e as quartas de sol. Tudo é melancolia em Campos dos Goytacazes. E vejam – não é qualquer campo – é o dos Goytacazes! Não é um campo grande, mourão, São José dos Campos, ou do Jordão. É dos Goytacazes. Índios nadadores e canibais com cabelos longos, raspados na parte central da cabeça. Com o povo de hoje, a única semelhança é a feiúra. Os goytacazes já não comem mais seus semelhantes. Comem coxinha de frango desfiado com catupiry, miojo instantâneo, esfirra e pra hidratar bebem Cintra ou Hula Hula.
Na Praça Central há uma pequena aglomeração de jovens feios, embriagados e morenos, que carregam instrumentos de percussão, cornetas, bolas de encher, Cintra e Hula Hula. E aqui está o motivo de minha viagem a este antro infecto: o estádio Godofredo Cruz. Não sei quem foi Godofredo Cruz. Provavelmente um corrupto, assassino ou até um cara de bem. São três e quarenta e seis de uma tarde quente. O jogo está marcado para as quatro. Me sinto só nesse lugar, perdido entre Cabo Frio e o Espírito Santo.
Após passar por uma roleta, um policial procede no ato da abordagem sobre a minha pessoa. Logo chego perto do alambrado e vislumbro a arquibancada de metal e madeira. Umas poucas centenas de goytacazes está espalhada pelas arquibancadas de forma esparsa. É festa. Gritos, reboladas, batucadas, papel picado e uns fogos de artifício comprados recebem o Americano no gramado. Estou acuado num canto temendo o lado canibal de cada goytacaz ali presente. Os norte-fluminenses se irriquietam, vaiam, xingam e expurgam mal agouros sobre a tímida delegação do Friburguense, que entra no campo todo de branco. O jogo começa tenso. Cintra é dois e Hula Hula é um e vinte. Faioli passa por Cadão e chuta. Jéferson salva uma, duas vezes. O estádio se levanta e grita “Canão ê ô, canão ê ô”. Só então descobri que o Americano era o “Canão”. Jogo cadenciado. Faltas, calor, sol, repórteres barrigudos à beira do campo. Jones reclama, é falta pro time da casa. Passou muito perto. “Olê lê ô – Alvi negrô”. Intervalo com direito a mijada no muro. Começa o segundo tempo. Famílias, capiais, jovens morenos. A noite é morta naquela cidade nefasta. A Cintra bateu torto e diferente - quente, dando uma dorzinha de cabeça. Trinta minutos. Passaram rápido. Quatro horas e meia de viagem para ver 75 minutos sem gol. O Friburguense ataca, o coração vai junto. Lançamento perfeito e o bandeirinha levanta seu instrumento. “Filho da puta!” – me escapa. Aos quarenta minutos, sem se dar conta, um tal de Lucrécio Alves, funcionário do estádio encarregado do auto-falante, vai dar uma informação que se revelaria muito importante minutos depois. Pegou o microfone desligou o “mute” e disse: “Substituição no Americano. “Sai Flavinho. Entra, Pinto”. Dois jovens, a uns metros de mim riem e comentam que o pinto entrou etc, enquanto degustam paçocas. Os goytacazes se enfezam e voltam a pensar em suas rotinas deprimentes. Passar o dia num cartório no centro daquela cidade carimbando papel de segunda a sexta para ganhar oitocentos reais no fim do mês. Penso no frio de Friburgo, as cercas vivas, as cachoeiras, as noites de orvalho. Enquanto isso, Marcelo Uberaba pensa mais alto, chega à linha de fundo e cruza a bola na área. O goleiro faz-que-vai-mas-não-vai e Pinto mergulha de cabeça para tocar a bola e estufar a rede. Gritos, barulho, mil e cem pessoas pulando e agitando os braços gordos. Quarenta e sete minutos do segundo tempo. É gol! É gol do Americano de Campos dos Goytacazes! Um grito de “Não é mole não, aqui em Campos ninguém ganha do Canão” ecoa. Fim de jogo. Os refletores se apagam lentamente. “Uh, tá maneiro o Pinto é artilheiro”. São dez e quarenta da noite em uma quinta-feira perdida em Campos dos Goytacazes - um Pinto fodeu a minha noite.

sexta-feira, abril 07, 2006



O Apogeu de Braga Lima

Embora não parecesse havia um homem sob os lençóis, seu corpo para os observadores (que não jaziam por ali), se confundia mais do que facilmente com as marcas amassadas do edredom que se encontrava com uma metade no chão, como se durante a noite, o piso também sentisse o frio incomum que fazia não no Rio de Janeiro, mas sim naquele quarto e naquela alma, frio esse que no caso não seria mais tão incomum.
Era tarde para os que dormem, e cedo para os que trabalham, um horário bem particular, um horário a la Apogeu de Braga Lima, o rubro, o seco, o magro, e o a duas semanas gripado dono da perna que se mexia vagarosamente na cama, dando a todos os observadores(que não jaziam por ali) a quase certeza de que quem dormia , por algum motivo desistira dessa atividade inativa.
Na televisão, o Hortelino Troca-letras tentava pegar o Perna-Longa com todo o afinco, Apogeu assiste a alguns minutos da saga com cabeça tonelante ,enquanto se convence de que preparar o café seria um bom investimento para um futuro próximo.
Pensava no quanto seria triste a vida de Hortelino depois que ele finalmente conseguir pegar o coelho , e se distraia olhando lentamente os seus dedos dos pés, a campainha toca.
O acontecimento é digno da total dilatação de seus olhos e contração de seu peito. O barulho irritante daquela campainha estuprava o categórico silêncio das madrugadas onde Apogeu costumava ouvir o Sol nascer fedendo a manhã, a campainha toca.
Seu dente rangeu, coçou a perna e calçou o chinelo, pois provavelmente ficara gripado pisando no tal chão que carecia de edredom.
Fungada.
Desde muito pequeno todos os seus familiares mais velhos ou não sempre lhe disseram para nunca cometer este tipo de impunidade, a campainha toca.
Fungada.
O silêncio de sempre já não existia ,os barulhos ficaram numa constância tal ,que não seria possível considerá-las leves acontecimentos e sim fatos.
Fungada longa, espirro!
Mão na maçaneta ,nunca percebera o quanto o apartamento era velho,cuidadosamente vai girando a maçaneta da forma menos paciente que o sono poderia permitir, ela vai rebolando até que para ,e aporta não se abre, obviamente estava trancada...ressente que tem que voltar até o quarto para buscar a chave, a campainha toca.
Três fungadas cinco espirros.
Embaixo da foto que toda a família sorria numa bicicleta em Paquetá, havia uma gaveta( a campainha toca) que é aberta impacientemente e com a certeza de quem encontraria a tal chave lá( a campainha toca).
Estronda-a com tanta força ,que faz com que o pobre objeto saia em sua( campainha toca) mão.
Num canto, relógios, cartões de locadora, uma calculadora que o sete não mais funcionava ,poemas ,cartas( campainha toca, campainha toca ,campainha toca) e embaixo de uma fita de vídeo onde um especial do globo repórter sobre a vida do piru albino na Tanzânia estava gravado, estava ela,a chave, embora parecesse bem menor do que se lembrava( Campainha toca!).Quando que ,como num tapa pesado no rosto, se da conta que era chave da antiga casa.
Espirro.
Apogeu toma um impulso como se fosse mergulhar em sua gaveta e nada, em meio a poemas, lixo, poemas-lixo ...e nada.
(Campainha toca).
Num canto, jogado na gaveta como se não fosse tão importante , como se não fosse santo, um pedaço de ferro,que emociona, conforta e ameniza , Apogeu estende a mão até aquele canto e...se depara com a mesma chave da casa de Itaquatiara que ele já havia achado a trinta segundos atrás .
Agora, batiam na porta, a campainha toca.
Fungou fundo, mas não espirrou estava com ódio, não se espirra com ódio.
Batiam na porta, a campainha tocava... pela última vez.
Não, não era pela última vez: A campainha toca e batem na porta.
Apogeu tentava a segunda gaveta de forma voraz e além de animalesca... Tinha fome de chave (A campainha tocou e tocou).Pulou para a terceira gaveta inacreditavelmente e sem querer saber de absolutamente nada que se diferi-se do momento , uma imagem de São Sebastião era lançada com semi-violência para longe do interior da gaveta onde estava.
Com o passar do tempo e com o não passar da frustração, Apogeu começa a notar que os chamados cessam, é notícia triste demais para um coração daquele tamanho... o silêncio estrondou-se , o Sol começava a berrar sua chegada nos ouvidos sensíveis como o de Apogeu, ausência de sons ,exceto pelo pequeno tilintar do brilho no olhar doentio e vazio que deprimiria a todos os observadores( que não jaziam por ali) da cena brutal ,que acontecia naquele horário Apogeu de Braga Lima.
No chão frio do quarto, diversas reminiscências de vida, incluindo um reminiscência rubra, seca, magra e que além de gripado a duas semanas , nunca teve observadores ,nem visitas , ou ligações, que se sentia pior em progressão geométrica em pensar que da única vez em que alguém pareceu lembrar dele, para seja lá o que fosse...ele não conseguiu encontrar a chave...
Não conseguiu encontrar a chave...deitou-se no chão e pôs-se a chorar com o peito arfante ,pegou canetas e papéis e do chão mesmo,escreveu poemas doloridos ,foi tomar banho com poemas doloridos e mente em chamas,alma em chamas, tal como todo o prédio.
Vários vizinhos estavam observando o prédio com lágrimas nos olhos, bem abrigados na rua, felizardos na fuga da fumaça.
Apesar de todos estarem chorando, o choro de um se destacava ,era o do 507 ,que soluçava por não ter conseguido salvar o rapaz do apartamento que ficava ao lado da escada, apesar de ter tentado sucessivas e desesperadas vezes ,naquele momento o apartamento era lambido pelas mais vermelhas das línguas quentes ,quarto a quarto,todos os papéis,edredons uma chave esverdeada embaixo de um tapete , e uma imagem de São Sebastião crepitavam em combustão .
Os observadores (que não jaziam por ali) chorariam, pois ninguém mais tocava a campainha, batia na porta,espirrava,ou fungava.

FIM

quinta-feira, abril 06, 2006




VERTICAIS

01. Pior empresa de telefonia celular existente.
02. José... : Amigo meu.
03. Raymundo... : Não sei ao certo quem foi.
04. Algo que se diz, quando não se sabe o que dizer.
05. Maneira pouco ortodoxa de se chamar alguém.
06. Palavra que inventei.
07. Resposta provável a pergunta "Tem sapato?" se feita numa sapataria.
09. O que eu faço quando não quero estar em algum lugar que já estou.
11. Maneira como chamei a minha mãe até começar a ficar ridículo.
16. Santo de alguma coisa que eu não sei bem o que é, no candomblé.
17. Nota musical inexistente.

HORIZONTAIS

01. Não fica bom com sal.
05. Tecla do computador que não uso.
08. Nome muito dado por hippies a suas filhas.
09. Número que não fede nem cheira.
10. Palavra muito encontrada em rótulos e embalagens.
12. Número que também serve como interjeição de tédio ou prazer.
13. Estado para qual nunca fui, nem tenho curiosidade.
14. Sabão em pó, que se for sexual é gay.
15. Apelido adequado para Fernando(a), mas impróprio para Sidney.
18. O meu sempre dá problema.
19. Algo que passou na vida de Paulinho da Viola.
20. Palavra imprópria para se usar na igreja ou em qualquer lugar.

quarta-feira, abril 05, 2006



SOBRE ELE

Ele olhou nos olhos e não quis sair dali, tinha recebido um presente que só tinha tamanho se comparado à sua alegria, não acreditou que iria acontecer, mas aconteceu pois a prova era aquela razão de viver em forma humana lhe dando um abraço que por ele seria sem fim. Que confusão gigante poderia ter aquela doce criatura miúda causado em sua vida? Não era o interesse naquela hora, só queria saber o que a tinha feito chegar até ali, parada, encarando toda a razão de um pobre rapaz com um olhar de criança.
Não sabia.
Não sabia de nada, não sabia quem era, o lugar, que dia, hora, minuto ou que segundo batia no relógio, pois estes não passavam nem perto daquele instante, uma cúpula atemporal que prendia os dois no “Até mais”.
O destino agia sozinho, pois sempre na hora da partida o tempo voltava em alguns minutos e o prendia ali: pés fincados no chão, a cabeça metralhando pensamentos e o coração explodindo a cada batida. 1, 2, 3 abraços... Aquela coreografia poderia se repetir infinitamente, ele não cansaria de dançá-la.
Por fim ele escorregou no tempo e se desvencilhou com muito pesar daquelas mãos pequenas... Pois não eram suas.

SOBRE ELA

Pra todos os efeitos ela estava errada, aquele não era o seu universo de costume e se não fosse uma súbita vontade de lhe dar de presente a sua presença, a esta hora ela estaria na cama, sonhando com seus compromissos de um mundo distante. Mas não, ela estava ali. E era bom. Era bom, mesmo não podendo ser. Talvez ela acreditasse que seu olhar não escondia nada, mas escondia... A vida de outro alguém. Ela sabia disso e esse conhecimento a renovava, talvez fosse esse o combustível que a levou até ali, a fez ficar, a fez encarar toda a razão do pobre rapaz com um olhar de criança.
Não sabia.
Não sabia de nada, não sabia que função aquele momento vulcânico dentro de si, tinha pro resto de sua vida, já organizada. Mas era único e era bom... O abraço, o carinho, os beijos nos lugares errados. Aquele sono sobre o mundo distante já batia, mas ela queria ficar, sendo a âncora que distanciava aquele encontro do “Até mais”.
Seu coração apertava ao sentir o outro, seria bom se “fim” fosse só palavra escrita, mas os dois sabiam que não era, por isso ela entrou na dança, se esquivando do tempo que enganado pelo cansaço mútuo achou que terminaria fácilmente com aquela chuva de abraços... O tempo não a conhecia... Não sabia que por trás daquele ar frágil existia uma decisão extrema, se aquela coreografia se repetisse infinitamente, ela não cansaria de dançá-la.
Por fim ela escorregou no tempo e se desvencilhou com muito pesar daquelas mãos quentes... Pois não eram suas.

SOBRE OS AMIGOS

- Onde é que eles tão?
- Metendo o piru.

Como se a vida fosse só isso...


terça-feira, abril 04, 2006



#1

Às três e quinze da manhã sua cabeça era um prato de macarrão instantâneo sabor galinha, a madrugada sem vento tinha fome de Vicente e ele ao acordar de sobressalto no meio dela saciava todas as estrelas opacas e mendigas carentes de carboidrato com tempero sabor Bulhões de Carvalho. Um pingo de urina da estrela mais pálida e doente cai no parapeito da janela onde as costas de Vicente nada vêem. Um pequeno milagre, ninguém para assistir.

“A vida é cheia desses momentos”,

um caminhão passa com a frase grafada no pára-choque, os pneus atritando com o asfalto preenchendo com som o momento que dois em cada dois católicos atribuiriam a algum santo de gesso. E Vicente é carne de estorvo, ao estar de costas e não ver o mijadão da estrela cair lá do alto. De manhã quando for fumar na janela vai sentir o mármore molhado, achar que é xixi de pombo e vai limpar a mão. A madrugada para ele vai ter sido da mesma cor da estrela que urinou na sua janela, o mesmo tom pálido do macarrão instantâneo. Quando se deitar novamente não vai ter passado de mais um insône faminto na madrugada devorante de uma grande cidade onde até estrela põe o piru pra fora.

#2

Liga a ducha no quente. Experimenta a temperatura com a mão. Muito quente. A mão dá lugar ao braço, o braço dá lugar ao ombro, a água escorre fervente por suas costas. Vicente grita. Grita e a água escorre por seu peito, barriga e púbis, molha a cueca azul clara. Novo grito e o corpo inteiro jaz banhado em água. A cueca fica azul escura. Vicente emite grunhidos e a água fervente acalenta sua musculatura como um carinho, carinho de gente estúpida.

Domingo é dia de idiotização da massa, se recusava a compactuar com isso. Não ligava a tv, não ligava o rádio, não ligava pros amigos, que também não ligavam pra ele. Não ia à praia, não ia à cachoeira, no Catete domingo só tem prédios, prédios e mais prédios. Porquê não continuar na ducha de cueca? Tinha cinco reais, maconha, uma ducha quente esplêndida e um vazio. Um buraco. Um buraco chamado Domingo.

Se enxugou com a toalha ainda úmida do banho passado, enxugou a cueca agora azul ciano mas não a tira. Foi até a janela. Ventava. Lá fora papéis, copos plásticos, sacos plásticos e toda espécie de sujeira como num pique-pega, corriam uns atrás dos outros. Os sacos plásticos voavam levando vantagem sobre os demais. Se imaginou voando também, se pudesse escolher seria uma sacola branca hipermercado. Não fazia as compras em hipermercados, comprava em mercadinhos com sacolas de papel que nem voavam nem corriam, rasgavam.

Vestiu uma camisa e tomou um comprimido de vitamina C. O tempo estava mudando. Sentou na poltrona e enxugou os cabelos. Voltou à janela e estendeu a toalha no parapeito já estava ficando com cheiro de môfo. Num dia normal o áudio seria de crianças brincando no Ciep em frente ao prédio.Hoje o barulho era uma mistura de apresentadores de tv, músicas de mal gosto, cachorros latindo e chuva. Chuva? Sim, estava chovendo!

E Vicente tem vontade de descer e correr molhado pelas ruas do Catete até amanhã de manhã, como num filme francês. E Vicente tem vontade de descer e correr molhado pelas ruas do Catete até amanhã de manhã, como num filme nacional. E Vicente tem vontade de descer e correr molhado pelas ruas do Catete até amanhã de manhã, como num filme publicitário. Mas ele está na janela com medo de ficar gripado e ter que faltar o trabalho amanhã.

#3

Os sacos e copos escoam lentamente até um bueiro e lá ficam retidos. Vicente vai à cômoda e abre uma caixinha de madeira. Lá se juntam a um braço de boneca e um cabo de vassoura. Vicente retira uma pedrinha prateada e a descasca. Agora chegam uma caneca vermelha, um óculos sem lente e uma escova de dentes. Sem a casca a pedrinha é verde. Os objetos se acumulam. A pedrinha é triturada. A água já não escorre com tanta facilidade. Um pequeno papel vazio. A água já não escorre. Um pequeno papel com a pedrinha verde triturada. A água transborda. Dedos tornam o papel um canudo. O lixo transborda. Dedos tornam o canudo um cigarro. Metade da rua é água. Numa mão o cigarro na outra o isqueiro. Metade da rua é lixo. Entre o cigarro e o isqueiro, o fogo. A rua inteira é água e lixo. Vicente são os olhos vermelhos que observam a tudo isso da janela.

segunda-feira, abril 03, 2006



Terça-feira

Celular. 8:00
Piru mea-bomba. Dor no ombro esquerdo. Colocar chinelos. Guardar lençol. Colocar colcha. Pegar toalha. Pegar roupa – separadas no dia anterior. Banheiro. Tirar chinelos. Abrir torneira. Água. Piru mea-bomba retrai fluxo sanguíneo: Xixi. Alivio. Shampoo. Sabonete. Água. Escova de dentes. Pasta de dentes. Cuspir. Condicionador. Listerine. Cuspir. Água. Fechar torneira. Toalha. Camisa. Cueca. Calça. Meias. Sapato. Mochila. Conferir: carteira, chaves, celular.
Porta, porteiro, rua.
Subiu no ônibus. Pegou o livro de bolso: Vidas Secas. Ao retomar a leitura do trecho da doença de Baleia, reparou que passou ao lado esquerdo do ônibus um motoqueiro com uniforme da polícia do Exército. Alguns segundos e o Segundo. E mais um.
O quarto parou ao sinal e mandou o ônibus seguir. Não seguiu ora, estava no ponto, pegando passageiros:
- Agora não vai mais não! – disse o PE.
De repente, todo o fluxo de veículos da Rua Jardim Botânico estava parado ao lado direito. Ao lado esquerdo, Passam dois blindados do Exército, seguidos de pelo menos vinte veículos com uns trinta homens armados dentro. Uma sequência de imagens desconexas fizeram um mosaico em sua cabeça: a batalha de porrolho que vencera contra os meninos da terceira série, a coleção de armas de plástico que tinha e que sua mãe jogou fora, o revólver 38 do pai, da música do Toquinho. Fitava os olhos dos homens dentro dos caminhões: meninos, mais novos que ele. Olhou todos que podia. nenhum sinal de preocupação. Dentro do ônibus, ouve o primeiro grito. Estava no 592: o destino final do ônibus e dos meninos armados era o mesmo. Suas pernas ficaram bambas, o coração bombeou sangue mais rápido ao mesmo tempo que o peito contraía. As pupilas levemente dilatadas embraqueciam com a lembrança da televisão: há dois dias passou o documentário sobre meninos que trabalham com tráfico. Todas as famílias brasileiras deviam ter visto… A população olhava sem reação. No ônibus, pessoas choravam preocupadas e ele um misto estático de idéias e sentimentos, observava. Os veículos não cessavam, transeuntes olhavam impávidos, sentiu vontade de gritar. Ontem mesmo conversara sobre a sensação de impotência perante os fatos da vida. Mandou torpedos para algumas pessoas. Respirou fundo a angústia coletiva. Acabou-se os blindados, os meninos. Os últimos a passar foram duas precárias ambulâncias que o fizerem se sentir na Primeira Guerra Mundial.
Carros acuparam os espaços vazios deixados pelos veículos militares rapidamente.
Ao chegar ao trabalho, fogos. Abre e-mails, manda e-mails. Tiros. Mais fogos. Tenta achar alguma informação nos jornais enquanto resolve algumas pendências do dia anterior, reserva na Catherine Hill seu material para a aula de caracterização na faculdade. Um estrondo enorme em frente à porta do trabalho: não, não era em frente ao trabalho.
Partiu em direção à Copacabana. Ao todo, o material custaria duzentos reais, valor exorbitante para quem ganha quinhentos. Apelou para os pais que, surprendentemente deram pronta ajuda. Duzentos reais em maquiagem. Exército nas ruas. Televisão. Tô atrasado pra faculdade. Copacabana.
Esforçava-se para fazer o círculo como a professora falava: na cabeça, dando a sensação de protuberância. “Duzentos reais e não parece nem protuberância, nem círculo e mal reconheço minha testa”. Agora um cone realçando a mandibula dando a ilusão de que dá para colocar um objeto por dentro da face. Tá lá o cone, cadê a ilusão? Ao menos um par de olhos verdes, com uma bola que também não parecia protuberância e um cone no rosto o fitava pelo espelho, assim como o par de seios ameaçava fazer o mesmo. Outros cones e círculos estavam a volta, mas era o par de olhos azuis e os seios que mais o chamavam a atenção. Esqueceu-se um pouco do exército. Lembrou-se que teria de fazer um texto para o blog que o Rafael deu idéia de juntar e que acabara de mudar o nome para uma sigla escrota. Escreveria toda segunda, outros amigos também escreveriam em outros dias, sabia que isso seria muito estranho: não sabia ao certo porque havia topado, apesar da convivência é provável que não tivesse muitas afinidades literárias com alguns amigos; mas seria interessante testar um novo veículo que o instigasse a escrever uma vez por semana. Duzentos reais. Gostava do Rafael.
Saiu para beber água três vezes na segunda aula. Não teve a terceira aula.
Saiu da faculdade novamente em direção à casa. Não havia almoçado, o est âmago roncava. Sentia os cabelos lhe puxando o couro cabeludo, as têmporas pareciam inchadas, tão quentes como outras partes do corpo: as pernas e o saco pareciam dilatados, o piru, ao contrario, não acompanhava o mesmo processo. Não teve nenhuma aula interessante. O exército na rua era quase uma lembrança distante, o rosto ainda um pouco sujo por causa da maquiagem, a segunda aula não lhe prendeu a atenção. O jornal no caminho avisava da viagem especial de um brasileiro, um brasileiro no espaço. É. No mesmo veículo todas as informações do mundo: final do campeonato carioca, Guerra do Iraque (os EUA preferem Guerra contra “o terror”), Geraldo Alckmin candidato, Luana Piovani e sua peça nova, documentário.
Chega à casa. Cumprimenta o cachorro que nem vira pela manhã. Sua camisa vai sujando na altura do peito: “esse cachorro tá crescendo”. Passeiam. Algumas mulheres bonitas. Voltam.
Banho.
Televisão. Desliga a televisão. Liga de novo. Aperta um fumo. O corpo vai se encaixado ao sofá. Pensamentos soltos: lembrava do exército, dos Comandos em Ação, duzentos reais, Iraque, olhos verdes refletidos no espelho, aula chata, aula que não teve, documentário na televisão, astronauta brasileiro, está chegando meu aniversário, Luana Piovani, está chegando a copa do mundo, Geraldo Alckimin, já passou o carnaval, blog.
Os olhos levementes cerrados, o cigarro no cinzeiro embala-o, nina-o na sua confusa relação de pensamentos. Inerte, deita a cabeça na almofada, tensiona o músculo do pescoço, estica o braço direito, gasta algumas células de energia no último esforço do dia: celular - 8:00.

domingo, abril 02, 2006



Piru


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