quinta-feira, maio 11, 2006








um filete de sangue nas gengivas.


Embora soubesse que Ítalo só chegaria às oito (quem sabe depois: ele costumava atrasar), Ana chegou no Restaurante Real às seis e meia. Se sentou à mesa da janela, como de costume, só que dessa vez de frente para a praia do Leme: o mar estourava quase no calçadão, pensou ela. Devia ser ressaca. Esfregou os olhos chorosos sob as lentes escuras de seus óculos e deitou a cabeça sobre a toalha quadriculada. Pôs-se a chorar copiosamente.
Quando acabaram as lágrimas,
enxugou os olhos na toalha de mesa e vasculhou a bolsa em busca de um caderninho. Não achou. Sacou então a bula de um remédio tarja preta e pós se a preenchê-la com a tinta da caneta bic, até que a bula inteira ficasse azul-marinho. Antes que conseguisse terminar sua tarefa, encheu o saco e pediu uma água tônica.
- Batista!
- Uma água tônica?
- Isso.
Vasculhou mais um pouco a bolsa. Uma caneta. Papeis avulsos. Óculos de grau só com uma lente. Outra caneta. Uma carta de Caio. A lente que faltava nos óculos de grau. Um bilhete de Cândida: “Me liga, cabrocha? Sem falta? Pára com isso. Please. Candide.”
Italo não chegava, pensou. Já havia perdido totalmente a vontade de falar com ele. Mas agora era tarde. Eis que surge aquela figura barbada e sorridente pela porta.
- Ítalo, diz ela.
Ele a segura num abraço tão apertado que ela só consegue sentir sua loção pós-barba. Como pode um sujeito tão barbado ter tanto cheiro de loção pós-barba? pensa ela. Mas ele não pensa nada. Apenas a aperta entre seus braços e seu peito largo. Estranha sua indiferença:
- Tudo bem, Ana?
Não, é claro que não estava tudo bem. Se estivesse ela não estaria ali chorando há horas no Real. Mas disse apenas: “Mais ou menos, Ítalo. Tá tudo mais ou menos.” E Ítalo desandou a falar de como ele também estava mal, de seus pequenos problemas burgueses, de que a geração deles estava perdida e de tantas coisas que Ana já tinha ouvido mais de mil vezes. Ana apenas desviou o olhar para o mar do Leme e, interrompendo os lamúrios de Ítalo, exclamou:

- Ítalo, acho que eu vou me suicidar.
Ítalo soltou então uma sonora gargalhada.
- Ana, não diz uma coisa dessas. Seu livro é um sucesso. Você é um sucesso.
- Pra quem?
- Pra todo o mundo. Você é uma unanimidade, Ana. Você é a mais talentosa da nossa geração, Ana.
- Pára de falar em geração, eu nem sei que merda é essa. O Caio escreveu um prefácio de merda pra mim, Ítalo. Ninguém se matriculou na porra da aula de tradução.
- E você vai se suicidar por causa disso?
- Não.
- Porque então?
Ana tentou balbuciar algo mais não conseguiu. Apenas tirou seus óculos escuros, pela primeira vez na noite. Sob as lentes seus olhos estavam vermelhos e inchados. Levantou-se, deu um beijo no rosto de Ítalo, pediu desculpas e saiu pela porta do Real, chorosa. Para nunca mais voltar.


3 Comentários:

Blogger Clara Mellac disse...

Dramático!
Não foi meu preferido, mas, como sempre, muito bom!
Beijo

7:26 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Quem é você??? Incorporou Ana Cristina legal. Lindo, poético e muito trágico. Parabéns.

12:36 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Nem perguntei: é Ana Cristina mesmo, não é?

12:36 PM  

Postar um comentário

<< Home



Web Counter