segunda-feira, abril 03, 2006



Terça-feira

Celular. 8:00
Piru mea-bomba. Dor no ombro esquerdo. Colocar chinelos. Guardar lençol. Colocar colcha. Pegar toalha. Pegar roupa – separadas no dia anterior. Banheiro. Tirar chinelos. Abrir torneira. Água. Piru mea-bomba retrai fluxo sanguíneo: Xixi. Alivio. Shampoo. Sabonete. Água. Escova de dentes. Pasta de dentes. Cuspir. Condicionador. Listerine. Cuspir. Água. Fechar torneira. Toalha. Camisa. Cueca. Calça. Meias. Sapato. Mochila. Conferir: carteira, chaves, celular.
Porta, porteiro, rua.
Subiu no ônibus. Pegou o livro de bolso: Vidas Secas. Ao retomar a leitura do trecho da doença de Baleia, reparou que passou ao lado esquerdo do ônibus um motoqueiro com uniforme da polícia do Exército. Alguns segundos e o Segundo. E mais um.
O quarto parou ao sinal e mandou o ônibus seguir. Não seguiu ora, estava no ponto, pegando passageiros:
- Agora não vai mais não! – disse o PE.
De repente, todo o fluxo de veículos da Rua Jardim Botânico estava parado ao lado direito. Ao lado esquerdo, Passam dois blindados do Exército, seguidos de pelo menos vinte veículos com uns trinta homens armados dentro. Uma sequência de imagens desconexas fizeram um mosaico em sua cabeça: a batalha de porrolho que vencera contra os meninos da terceira série, a coleção de armas de plástico que tinha e que sua mãe jogou fora, o revólver 38 do pai, da música do Toquinho. Fitava os olhos dos homens dentro dos caminhões: meninos, mais novos que ele. Olhou todos que podia. nenhum sinal de preocupação. Dentro do ônibus, ouve o primeiro grito. Estava no 592: o destino final do ônibus e dos meninos armados era o mesmo. Suas pernas ficaram bambas, o coração bombeou sangue mais rápido ao mesmo tempo que o peito contraía. As pupilas levemente dilatadas embraqueciam com a lembrança da televisão: há dois dias passou o documentário sobre meninos que trabalham com tráfico. Todas as famílias brasileiras deviam ter visto… A população olhava sem reação. No ônibus, pessoas choravam preocupadas e ele um misto estático de idéias e sentimentos, observava. Os veículos não cessavam, transeuntes olhavam impávidos, sentiu vontade de gritar. Ontem mesmo conversara sobre a sensação de impotência perante os fatos da vida. Mandou torpedos para algumas pessoas. Respirou fundo a angústia coletiva. Acabou-se os blindados, os meninos. Os últimos a passar foram duas precárias ambulâncias que o fizerem se sentir na Primeira Guerra Mundial.
Carros acuparam os espaços vazios deixados pelos veículos militares rapidamente.
Ao chegar ao trabalho, fogos. Abre e-mails, manda e-mails. Tiros. Mais fogos. Tenta achar alguma informação nos jornais enquanto resolve algumas pendências do dia anterior, reserva na Catherine Hill seu material para a aula de caracterização na faculdade. Um estrondo enorme em frente à porta do trabalho: não, não era em frente ao trabalho.
Partiu em direção à Copacabana. Ao todo, o material custaria duzentos reais, valor exorbitante para quem ganha quinhentos. Apelou para os pais que, surprendentemente deram pronta ajuda. Duzentos reais em maquiagem. Exército nas ruas. Televisão. Tô atrasado pra faculdade. Copacabana.
Esforçava-se para fazer o círculo como a professora falava: na cabeça, dando a sensação de protuberância. “Duzentos reais e não parece nem protuberância, nem círculo e mal reconheço minha testa”. Agora um cone realçando a mandibula dando a ilusão de que dá para colocar um objeto por dentro da face. Tá lá o cone, cadê a ilusão? Ao menos um par de olhos verdes, com uma bola que também não parecia protuberância e um cone no rosto o fitava pelo espelho, assim como o par de seios ameaçava fazer o mesmo. Outros cones e círculos estavam a volta, mas era o par de olhos azuis e os seios que mais o chamavam a atenção. Esqueceu-se um pouco do exército. Lembrou-se que teria de fazer um texto para o blog que o Rafael deu idéia de juntar e que acabara de mudar o nome para uma sigla escrota. Escreveria toda segunda, outros amigos também escreveriam em outros dias, sabia que isso seria muito estranho: não sabia ao certo porque havia topado, apesar da convivência é provável que não tivesse muitas afinidades literárias com alguns amigos; mas seria interessante testar um novo veículo que o instigasse a escrever uma vez por semana. Duzentos reais. Gostava do Rafael.
Saiu para beber água três vezes na segunda aula. Não teve a terceira aula.
Saiu da faculdade novamente em direção à casa. Não havia almoçado, o est âmago roncava. Sentia os cabelos lhe puxando o couro cabeludo, as têmporas pareciam inchadas, tão quentes como outras partes do corpo: as pernas e o saco pareciam dilatados, o piru, ao contrario, não acompanhava o mesmo processo. Não teve nenhuma aula interessante. O exército na rua era quase uma lembrança distante, o rosto ainda um pouco sujo por causa da maquiagem, a segunda aula não lhe prendeu a atenção. O jornal no caminho avisava da viagem especial de um brasileiro, um brasileiro no espaço. É. No mesmo veículo todas as informações do mundo: final do campeonato carioca, Guerra do Iraque (os EUA preferem Guerra contra “o terror”), Geraldo Alckmin candidato, Luana Piovani e sua peça nova, documentário.
Chega à casa. Cumprimenta o cachorro que nem vira pela manhã. Sua camisa vai sujando na altura do peito: “esse cachorro tá crescendo”. Passeiam. Algumas mulheres bonitas. Voltam.
Banho.
Televisão. Desliga a televisão. Liga de novo. Aperta um fumo. O corpo vai se encaixado ao sofá. Pensamentos soltos: lembrava do exército, dos Comandos em Ação, duzentos reais, Iraque, olhos verdes refletidos no espelho, aula chata, aula que não teve, documentário na televisão, astronauta brasileiro, está chegando meu aniversário, Luana Piovani, está chegando a copa do mundo, Geraldo Alckimin, já passou o carnaval, blog.
Os olhos levementes cerrados, o cigarro no cinzeiro embala-o, nina-o na sua confusa relação de pensamentos. Inerte, deita a cabeça na almofada, tensiona o músculo do pescoço, estica o braço direito, gasta algumas células de energia no último esforço do dia: celular - 8:00.

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

teve guerra no baixo rocinha ontem?

2:29 PM  
Anonymous Anônimo disse...

É meu favorito

8:39 AM  

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