terça-feira, abril 04, 2006



#1

Às três e quinze da manhã sua cabeça era um prato de macarrão instantâneo sabor galinha, a madrugada sem vento tinha fome de Vicente e ele ao acordar de sobressalto no meio dela saciava todas as estrelas opacas e mendigas carentes de carboidrato com tempero sabor Bulhões de Carvalho. Um pingo de urina da estrela mais pálida e doente cai no parapeito da janela onde as costas de Vicente nada vêem. Um pequeno milagre, ninguém para assistir.

“A vida é cheia desses momentos”,

um caminhão passa com a frase grafada no pára-choque, os pneus atritando com o asfalto preenchendo com som o momento que dois em cada dois católicos atribuiriam a algum santo de gesso. E Vicente é carne de estorvo, ao estar de costas e não ver o mijadão da estrela cair lá do alto. De manhã quando for fumar na janela vai sentir o mármore molhado, achar que é xixi de pombo e vai limpar a mão. A madrugada para ele vai ter sido da mesma cor da estrela que urinou na sua janela, o mesmo tom pálido do macarrão instantâneo. Quando se deitar novamente não vai ter passado de mais um insône faminto na madrugada devorante de uma grande cidade onde até estrela põe o piru pra fora.

#2

Liga a ducha no quente. Experimenta a temperatura com a mão. Muito quente. A mão dá lugar ao braço, o braço dá lugar ao ombro, a água escorre fervente por suas costas. Vicente grita. Grita e a água escorre por seu peito, barriga e púbis, molha a cueca azul clara. Novo grito e o corpo inteiro jaz banhado em água. A cueca fica azul escura. Vicente emite grunhidos e a água fervente acalenta sua musculatura como um carinho, carinho de gente estúpida.

Domingo é dia de idiotização da massa, se recusava a compactuar com isso. Não ligava a tv, não ligava o rádio, não ligava pros amigos, que também não ligavam pra ele. Não ia à praia, não ia à cachoeira, no Catete domingo só tem prédios, prédios e mais prédios. Porquê não continuar na ducha de cueca? Tinha cinco reais, maconha, uma ducha quente esplêndida e um vazio. Um buraco. Um buraco chamado Domingo.

Se enxugou com a toalha ainda úmida do banho passado, enxugou a cueca agora azul ciano mas não a tira. Foi até a janela. Ventava. Lá fora papéis, copos plásticos, sacos plásticos e toda espécie de sujeira como num pique-pega, corriam uns atrás dos outros. Os sacos plásticos voavam levando vantagem sobre os demais. Se imaginou voando também, se pudesse escolher seria uma sacola branca hipermercado. Não fazia as compras em hipermercados, comprava em mercadinhos com sacolas de papel que nem voavam nem corriam, rasgavam.

Vestiu uma camisa e tomou um comprimido de vitamina C. O tempo estava mudando. Sentou na poltrona e enxugou os cabelos. Voltou à janela e estendeu a toalha no parapeito já estava ficando com cheiro de môfo. Num dia normal o áudio seria de crianças brincando no Ciep em frente ao prédio.Hoje o barulho era uma mistura de apresentadores de tv, músicas de mal gosto, cachorros latindo e chuva. Chuva? Sim, estava chovendo!

E Vicente tem vontade de descer e correr molhado pelas ruas do Catete até amanhã de manhã, como num filme francês. E Vicente tem vontade de descer e correr molhado pelas ruas do Catete até amanhã de manhã, como num filme nacional. E Vicente tem vontade de descer e correr molhado pelas ruas do Catete até amanhã de manhã, como num filme publicitário. Mas ele está na janela com medo de ficar gripado e ter que faltar o trabalho amanhã.

#3

Os sacos e copos escoam lentamente até um bueiro e lá ficam retidos. Vicente vai à cômoda e abre uma caixinha de madeira. Lá se juntam a um braço de boneca e um cabo de vassoura. Vicente retira uma pedrinha prateada e a descasca. Agora chegam uma caneca vermelha, um óculos sem lente e uma escova de dentes. Sem a casca a pedrinha é verde. Os objetos se acumulam. A pedrinha é triturada. A água já não escorre com tanta facilidade. Um pequeno papel vazio. A água já não escorre. Um pequeno papel com a pedrinha verde triturada. A água transborda. Dedos tornam o papel um canudo. O lixo transborda. Dedos tornam o canudo um cigarro. Metade da rua é água. Numa mão o cigarro na outra o isqueiro. Metade da rua é lixo. Entre o cigarro e o isqueiro, o fogo. A rua inteira é água e lixo. Vicente são os olhos vermelhos que observam a tudo isso da janela.

9 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Grande Remo! gostei!
o mundo ta cheio desses "cegos"

hehehe!
abraços

8:36 AM  
Anonymous Anônimo disse...

q incrivel remo, adoro essas metaforas, principalmente quando sao ironicas!! vc devia escrever, ou pelo menos publicar mais!

se cuida

8:54 AM  
Anonymous Anônimo disse...

carái, escreves bem fulano. vida longa à coluna fragmentada.

2:50 PM  
Anonymous Anônimo disse...

.incrivel! adoro essa tua verborragia meio marginal meio lírica. poético. e a #3 ta impecável. adorei

3:00 PM  
Anonymous Anônimo disse...

mais uma vez, amei o que li ... adoro seu estilo de escrever..faz o leitor se envolver com a história como se estivesse alí na cena e dentro da cabeça do personagem...o jogo das palavras e das idéias,a ironia! e o vicente...

3:13 PM  
Anonymous Anônimo disse...

mais uma vez, amei o que li ... adoro seu estilo de escrever..faz o leitor se envolver com a história como se estivesse alí na cena e dentro da cabeça do personagem...o jogo das palavras e das idéias,a ironia! e o vicente...

3:14 PM  
Anonymous Anônimo disse...

"quase sanguineo"
tive q ler umas duas vezes pra tentar não ver como um curta

7:04 PM  
Anonymous Anônimo disse...

"fragmento" diz muito sobre pessoas e aspectos. Mas é ele tambem que persiste em florescer as duvidas. Aqui a gente ve um olhar, um momento (s) que diz muito sobre algo, e que "a gente" se associa bastante a esse algo. Mas como isso me completa?Preciso/precisamos de um todo para sobreviver.
Seria esse fragmento um todo?

*Marcelo

P.S.: comento mas prefiro falar "ao vivo" .. hehhehee..

9:11 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Estive num canto do apartamento no Catete observando tudo, ouvindo o barulho da chuva e lamentando por Vicente não ter corrido até amanhã de manhã como num filme qualquer.

9:25 PM  

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